Muito se tem falado sobre os nazistas e o respectivo período negro da história da Alemanha, a ponto de nos sentirmos meio anestesiados com o tanto de comparações entre Adolf Hitler e vários políticos da atualidade, inclusive os de orientação diametralmente oposta à do nazismo.
Assistimos a tantos filmes sobre campos de concentração — muitos deles bastante recentes — que fomos criando uma certa indiferença às atrocidades retratadas.
Devido ao distanciamento e, em grande parte, às imagens históricas em preto e branco, os corpos amontoados e torturados, embora racionalmente saibamos que as vítimas são reais, passam a impressão de uma narrativa ficcional. Quem não viveu na carne esse pesadelo, compreensivelmente, não consegue na verdade acreditar que algo tão nefasto realmente ocorreu.
Mas o que aconteceria se, de repente, nos víssemos testemunhando essas mesmas atrocidades ao vivo e em cores, em tempo real, na TV e na tela do celular? O que aconteceria se um tirano à altura de tal desumanidade surgisse no cenário mundial contemporâneo e provocasse esse mesmo tipo de sofrimento?
Não é mais preciso especular. Isso realmente aconteceu, no mês passado, na semana passada, anteontem. As fotos divulgadas na TV todos os dias, os vídeos filmados por jornalistas amadores no celular e seu doloroso conteúdo de corpos retorcidos, queimados e amontoados não deixam a propaganda mentir, para nem mencionar as alegadas deportações forçadas de ucranianos para um lugar ignorado na Rússia.
Ainda existe um clima de discussão sobre o tema, alguns se posicionando claramente a favor da Ucrânia, outros tentando justificar um agora injustificável apoio a Vladimir Putin, tentando infundir o habitual clima de polarização política nos dois lados da mortal equação.
Esta semana mesmo Barack Obama, o elegante, charmoso, sacrossanto Barack Obama, declarou em uma conversa que “não tinha certeza de que o Putin que ele conheceu quando era presidente ‘é a mesma pessoa que no momento é o líder encarregado’”, aproveitando para injetar um pouco de veneno e insinuar que os conservadores destruidores da democracia fazem parte desse mesmo pacote de maldades, seguindo a “tendência” da grande mídia de descrever os americanos republicanos como asseclas, vassalos de Putin — entre eles vocês sabem quem.
A verdade é que chega um ponto na vida de qualquer pessoa que a verdade se torna tão gritante que precisamos desistir de nossos pontos de vista e passar a acreditar simplesmente no que estamos vendo.
E, apesar dos rídículos esforços de propaganda dos russos no sentido de afirmar que as vítimas ucranianas não passam de “atores cuidadosamente dispostos na cena” para convencer o mundo de que seu exército é o vilão da história, estamos em um momento como esse.
Algumas tímidas tentativas de recuperação da sanidade mundial começam a aparecer. Por exemplo, esta semana a assembleia geral da ONU votou para tirar — digo, suspender — a Rússia do conselho de “direitos humanos” (a ONU bem merece as aspas: o “conselho de direitos humanos” é um comitê selecionado formado de países especializados em cometer atrocidades e todo tipo de violações de direitos humanos). Além disso, as tentativas de manipular a opinião pública estão esbarrando na habilidade de escuta amplamente disseminada graças à moderna tecnologia, como em um relatório divulgado pela inteligência alemã comprovando que a destruição e as mortes de civis inflingidas pela Rússia não foram acidentais nem um resultado involuntário dos horrores da guerra, mas cuidadosamente pla-ne-ja-das.
É claro que, por outro lado, não faltam relatos semelhantes acusando os soldados ucranianos de executar prisioneiros russos. É claro também que a opinião pública está sendo magistralmente “manipulada” pelo talentoso Volodymyr Zelensky, já apelidado de “o novo Churchill” e onipresente em todas as telas mais relevantes do mundo. Neste domingo, por exemplo, Zelensky estará no popular “60 minutes” da CBS para defender seu país e conclamar o mundo a lhe dar apoio. Mas no caso da Ucrânia e de Zelensky, é preciso dar um desconto — e, além de apoio, dinheiro e armas modernas — porque, afinal de contas, o país foi atacado pela Rússia.
No momento, as forças russas meio que bateram em retirada na maior parte do país e reconheceram ter sofrido baixas pesadas. Porém, todos os estrategistas e generais que escutamos na TV são unânimes em afirmar que estão apenas se “reagrupando” e se preparando para uma nova ofensiva. E mais atrocidades, com o apoio dos chechênios e de mercenários terroristas importados, tutti buona gente.
Enquanto isso, o vácuo deixado pelos russos vai permitindo a descoberta de mais atrocidades, mais valas coletivas — incluindo, arrepiem-se, crematórios móveis para eliminar os restos humanos —, mais sofrimento, embora, por outro lado, haja sinais de alívio, com alguns exilados retornando ao país e a prefeitura de Kiev, sim, acreditem, plantando canteiros de amor-perfeito nas ruas da cidade para nos lembrar de que a primavera chegou.
Semana que vem não vai ter crônica. Vou passar os feriados da Semana Santa na casa do meu filho na Carolina do Norte, oba. Chag Pessach sameach e boa Páscoa!
*O título da crônica é uma estrofe de um famoso poema do poeta russo Evgeny Yevtushenko sobre a destruição perpetrada pelos nazistas em Kiev durante a Segunda Guerra Mundial (https://mostlykind.com/babi-yar-por-yevgeny-yevtushenko/ e https://www.conib.org.br/morre-yevgeny-yevtushenko-poeta-russo-que-gravou-na-historia-o-massacre-de-babi-yar/)
Feliz Passover, Noga. Aproveite os dias com as pessoas queridas!