Solidários no câncer
Existe um ditado no lugar onde passei minha infância e adolescência — que nem lembro mais exatamente o que significa, após mais de 50 anos fora de Minas —, afirmando que “O mineiro só é solidário no câncer”.
Vale lembrar, ainda, que quando eu morava em Minas, várias encarnações atrás, a palavra “câncer” era impronunciável. O sócio do meu avô, por exemplo, morreu de câncer no pulmão há uns 60 e tantos anos, e quando fomos visitá-lo em seu leito de morte, o nome da doença não podia ser mencionado, porque era proibido.
Hoje, é exatamente o contrário. Todo mundo que é diagnosticado com câncer — e o número de pessoas é cada vez maior, não sei se por que os riscos ambientais aumentaram, ou a expectativa de vida aumentou, ou os exames preventivos melhoraram, ou todas as opções anteriores — se sente na obrigação de declarar para o mundo, não sei bem com que propósito, que está “enfrentando” a doença.
Francamente, você não vai querer o tipo de solidariedade que esse tipo de declaração provoca — e não estou falando, obviamente, de amigos íntimos ou do círculo familiar de uma pessoa, mas do “mundo”, ou seja, da rede social. Isso porque, apesar de um diagnóstico de câncer ter deixado de ser uma sentença de morte devido ao espetacular avanço dos exames e dos tratamentos, o paciente de câncer continua sendo enxergado como uma pessoa moribunda, com data marcada para morrer, mesmo que a morte anunciada leve 10, 20 anos para acontecer e costume ocorrer por outras razões.
Isso, fatalmente, afeta gravemente a pessoa que comunica seu estado, de acordo com Ellen Langer, interessante psicóloga da Universidade de Harvard e autora de The Mindless Body. Segundo a Dra. Langer, o próprio paciente de câncer inserido na “malha médica” tem essa mesma expectativa, isto é, de ser alguém condenado à morte… para o resto da vida.
Obviamente, existem exceções. No caso, estou falando da “bombástica” revelação da princesa de Wales, Kate Middleton, na tarde de ontem, uma “tragédia” que superou todo o resto do noticiário no resto do dia e fez cair inúmeras pautas em todos os canais e redes sociais.
Kate, ao que parece, foi de certa forma obrigada a revelar sua condição devido ao “exponencial acúmulo” de especulações sobre sua vida na rede social, não sei exatamente quais, mas que foram assunto não especificado de diversos artigos na edição do Times of London deste sábado. Imagino que fossem boatos de que seu marido tinha uma amante, ou isso ou aquilo, ou disputas com sua cunhada persona non grata Meghan Markle, como o motivo para Kate andar desaparecida, apesar de ser mantida a “rédea curta” pela mídia britânica e mundial especializada na família real.
O resultado imediato foi que os eternos arautos da desgraça calaram a boca temporariamente e agraciaram a princesa doente com uma “enxurrada de amor”, pelo menos isso.
Vejam bem, tenho simpatia pela princesa Kate e pela família real britânica em geral e acho preocupante que Kate, mãe de três filhos, futura rainha da Inglaterra e com apenas 42 ou 43 anos de idade, esteja com câncer. Mas a verdade é que a revelação não revelou qual o tipo de câncer, nem o estágio do câncer — que, segundo a miríade de novas especulações que se seguiu, tem uma boa chance de ser de fundo ginecológico e passível de tratamento —, e a última coisa de que Kate deve estar precisando é um público de bilhões de pessoas acreditando que está condenada à morte.
No caso específico da princesa, desejo que seja este o caso — digo, um câncer que pode ser curado — e que ela se recupere completamente após o tratamento, já que ninguém merece morrer de doença antes dos 50 anos (nem depois, para ser franca).
Agora, existe um outro motivo para eu abordar esse assunto além da problemática das redes sociais: a saúde é mais um fator que hoje em dia é intensamente explorado para fazer com que vivamos com medo, paralisados pelo medo, e o medo do câncer é um dos principais, diariamente alimentado pelos arautos do apocalipse que, em outras paragens, se concentram, por exemplo, no fim da humanidade devido à crise climática.
O mais recente sintoma dessa maluquice foi o artigo publicado hoje no American Thinker, um portal em que costumo confiar, com o tranquilizador título “Por que a FDA está contaminando o estoque de sangue dos Estados Unidos?”
O artigo com essa escandalosa premissa, em tese escrito por um médico, revela não apenas que a FDA está agora permitindo e incentivando a doação de sangue por portadores de HIV, mas que “crianças estão morrendo após transfusões de sangue contaminado em cirurgias”. Vai mais além, chamando a FDA de “deep state” (a ideia de que existe um governo nas sombras que controla a vida nos EUA, uma teoria de conspiração clássica) e afirmando que a agência tem uma nova missão de eliminar a população americana, quiçá mundial. A cereja do bolo é a revelação de que o sangue de pessoas que foram vacinadas contra a covid também está contaminado e matando pacientes, e vale notar que as pessoas vacinadas contra covid são em torno de 80% da população do país, talvez mundial.
Meus amigos, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Vamos todos morrer, de uma forma ou de outra, algumas mais dolorosas do que outras, mas hoje não era o dia em que eu estava disposta a aceitar esse estado de coisas, então fui ao nosso amigo Google e pesquisei que poxxx era essa de a FDA estar contaminando a “bolsa de sangue” americana.
Obviamente não era nada disso, apenas que a FDA, e já faz quase um ano, mudou suas orientações do questionário de doadores eliminando a pergunta sobre orientação sexual, mas mantendo todas as marcas de segurança, como vocês podem ver aqui.
Cansaço, viu.
Em outras notícias, quero aproveitar para louvar o valor da inteligência, e em um lugar onde vocês jamais suspeitariam: Donald Trump.
O homem é um demônio, mas no bom sentido, um demônio de inteligência.
Vocês devem saber que o capítulo mais recente da perseguição ao candidato que está à frente das pesquisas eleitorais para presidente é a tentativa de fazê-lo ir à falência. No momento, DJT está sendo vítima de uma investigação criminal que tem por base a extorsão e que o condenou a depositar a módica quantia de US$ 450 milhões até segunda-feira, um montante que excede os limites de todas as organizações americanas dedicadas a emprestar dinheiro para pagar fianças judiciais. Se o montante não for depositado, a procuradora-geral do estado de Nova York Letitia James promete “tomar posse” de Mar-a-Lago, o famoso clube e residência de Trump na Flórida e, quem sabe, até mesmo da Trump Tower em Nova York para cobrir o valor. Os “procedimentos” de Mrs. James já estão “em andamento”. Argh.
Os inimigos de Trump, que são legião, estão — digo, estavam — salivando, mal podendo esperar para vê-lo se mudar para uma barraca embaixo da ponte de Key West (piada), já que o candidato vinha revelando publicamente suas dificuldades para conseguir o dinheiro em prazo tão curto.
Um detalhe é que, para apelar judicialmente, o valor que um indiciado foi condenado a pagar precisa ser depositado em juízo. Ninguém acredita que Trump vá perder essa apelação porque o caso é absurdo demais da conta, mas a questão era o depósito judicial que vence na segunda-feira, entenderam?
No entanto, como todo mundo sabe, peru não morre de véspera, e vai daí que ontem à tarde foi revelado à imprensa que a rede social de Trump, Truth Social, foi objeto de uma fusão com a empresa de capital aberto Digital World Acquisition Corp. e suas ações estarão disponíveis na Nasdaq já na próxima semana — um evento típico do maravilhoso capitalismo americano.
Trump vai embolsar mais de US$ 3 bilhões na negociação, suficiente para fazer frente a todos os seus perseguidores e tentativas de extorsão, ô bão, sô!
That’s my guy!