No último fim de semana tivemos aqui o lançamento (nos “cinemas”, lembram o que é isso?) do último filme de 007, “Sem tempo para morrer”. Dizem que o filme é deslumbrante e que Daniel Craig está impecável, mas, como milhões de cinéfilos americanos, decidi não sair de casa para assisti-lo, sabem como é: vestir uma roupa, tirar o carro da garagem, estacionar no shopping e por aí vai... acho que nem sei mais fazer essas coisas.
No entanto, o novo lançamento motivou todos os serviços de streaming como Prime e Netflix a desenterrar seus velhos filmes de 007 e colocá-los na vitrine da frente na esperança de atrair novos espectadores, e foi assim que, meio sem querer, comecei a assistir um de 2015 que eu nunca tinha visto, “007 Contra Spectre”, o último da série antes desse de agora.
Não sou nem um pouco fã de filmes de James Bond. Acho muito frenéticos, barulhentos, com excesso de efeitos, mas devo admitir que esse “007 Contra Spectre” também é absolutamente deslumbrante. O já mítico Daniel Craig, que também costuma ser ótimo em outros papéis, está perfeito, as paisagens e cenários, internos e externos, todos maravilhosos, com arquitetura e design da mais alta qualidade. Adoro ver filmes com casas bonitas, móveis bonitos, roupas bonitas — se me acharem fútil, paciência — elementos que são cada vez mais raros, principalmente com a enxurrada de filmes baratos especiais para streaming que nem atores de verdade têm mais. No outro dia percebi que os nomes dos “atores” atuais, todos de terceira para baixo, nem sequer são mais citados na descrição dos filmes na Amazon. É a morte do cinema como o conhecemos! Ou conhecíamos. Requiescat in pace.
Então aqui em casa desenvolvemos esse critério esquisito, segundo o qual sempre procuramos ver filmes com atores conhecidos, não meros “operários cinematográficos”, o que limita bastante a oferta, principalmente em tempos de COVID. A imensa maioria dos atores conhecidos está próxima da aposentadoria, como Daniel Craig — mais sobre isso daqui a pouco —, ou pior, do cemitério. No “007 Contra Spectre” a atriz principal, que eu não conhecia, é uma francesa meio que uma pseudo-Naomi Watts — as duas são muito parecidas, até as confundi no início, mas a francesa quase dá conta do recado e, além do mais, usa roupas lindíssimas e saltos altíssimos, até para correr dos vilões, um verdadeiro milagre que não tenha torcido o tornozelo durante as filmagens.
Por falar em beleza, o melhor diálogo do filme são duas frases trocadas por Bond e sua musa, quando ela aparece para jantar num lindo longo verde-água drapeado:
— Você não deveria me encarar desse jeito — diz ela.
— E você não deveria estar linda desse jeito — diz ele (bem melhor no original, “You shouldn’t look like that.”).
Agora, nem só de futilidade e efeitos vive “007 Contra Spectre”. No filme Bond está meio proscrito, despojado de seus truques manjados e atuando como um “matador independente”. Na verdade está seguindo instruções póstumas de sua adorada “M”, que no filme foi substituída por um “M” masculino — Ralph Fiennes, contaminado para sempre por Harry Potter —, no sentido de assassinar o super vilão responsável por sua morte que representa uma terrível ameaça para o mundo.
E foi esta ameaça que tornou o filme muito mais atraente e interessante, indo muito além de brinquedinhos letais e dos vilões de quadrinhos habituais: por trás de todos os desafios enfrentados por Bond está um cientista de dados louco que criou um inédito sistema global que deverá mudar o mundo — para pior, muito pior.
No filme, o sistema de computador teria acesso amplo e irrestrito à vida de todas as pessoas e pretendia monitorar seu comportamento, tendo como único e exclusivo objetivo um controle total da vida na terra nas mãos de uma única pessoa, uma espécie de poder que apenas um legítimo vilão pode ambicionar. Se vocês encontrarem nesta minha descrição uma assustadora semelhança com o mundo em que estamos vivendo, não será mera coincidência. Estamos diariamente a um passo de permitir que isso aconteça, embora no filme a atuação heroicamente impossível de James Bond, obviamente, nos salva desse trágico destino.
Quem seria hoje em dia o nosso herói estilo James Bond, capaz de nos salvar dessa cruel e aparentemente inevitável derrocada cibernética? Não consigo me lembrar de nenhum candidato. Já as versões personificadas na vida real do arquivilão Franz Oberhauser estão em cada esquina, ou, pelo menos, em cada plataforma de computador.
É de arrepiar.
“007 Contra Spectre” é a última atuação de Daniel Craig no papel de James Bond. As habituais discussões “woke” já tomaram conta das especulações sobre quem o substituirá, nos ameaçando com um James Bond que será mulher, gay, chinês, transgênero ou sei lá mais o quê, he/him/she/her/they/them, algo que já foi tentado sem nenhum sucesso com pelo menos um outro ícone da literatura, Sherlock Holmes. Não sei se na vida real esses estereótipos de gente que acima de tudo se preocupa com a “diversidade” e com o próprio umbigo dariam um espião ideal, mas no mundo da ficção, vamos combinar, James Bond é esse agente secreto branco, sofisticado, elegante, heterossexual e amante de boa comida, boa bebida e carros importados. E acabou-se a história, ou melhor, se não for assim se acabará esta história, como tantas outras que apreciamos ao longo da vida.
Para quem não sabe, o personagem de Bond, James Bond, foi criado por Ian Fleming em 1953 e já foi objeto de 27 filmes com vários atores diferentes, todos, no entanto, fiéis à imagem original projetada por seu criador.
A partir desta edição, devido a uns movimentos que estou fazendo na minha carreira de tradutora, passarei a publicar esta crônica aos sábados. Espero que vocês continuem comparecendo!
Vamos falar de Bond, James Bond
Adoro suas crônicas e eu, que não me interesso por James Bond, fiquei com vontade de assistir. Noga, veja o Don't look up, com o Leonardo DiCaprio. Ali fica bem claro a derrocada da humanidade. Nenhuma coincidência com o que vivemos hoje em dia.